Solidão da mulher preta
Não é apenas estar sozinha, mas é ser reduzida à nada ao lado de uma mulher branca.
Todos já estão cansados de conversar e debater sobre o racismo, parece ser algo já intrínseco ao caráter humano “não ser racista”. Todos sabem que o racismo é errado, chega a parecer vitimismo pelo tanto que esse assunto é abordado e comentado. Porém, o racismo se desdobra em esferas muito mais sutis do que a simples injúria racial escancarada, o racismo é velado, encoberto, sujo e calculista. A carcaça da escravidão sempre correu em minhas veias, sempre se fez presente durante os meus dias. Não havia um dia que eu não lembrasse que eu era negra e não havia nada no mundo que mudasse isso.
Desde menina entendi minha posição no mundo, mesmo ouvindo repetidas vezes durante as aulas que todos somos iguais, que todos somos humanos, eu não me sentia igual, no fundo sabia que teoria vazia nunca firmava vivência, embora meus professores (todos brancos) me usassem como modelo nas aulas de história ou biologia eu sabia que não passava de um artefato a ser comentado, era a única menina negra em minha sala, não havia outros como eu, caía sobre mim todas as desprazerosas situações de ter todos olhando para mim, parecia ser algo diferente, uma espécie de bicho.
Tinha a cor de um pecado, uma pele de jambo mas nunca fui bonitinha o suficiente para ganhar cartinha de amor no fundamental, meu nome sempre constava no final da lista de meninas mais bonitas da sala, sempre fui a que está lá para complementar cota, nunca importante o suficiente para que valesse sua atenção. Foi nesse ciclo cruel e realista que percebi, muito nova, que teria que compensar meu excesso de melanina em outras habilidades, decidi ser a mais esforçada da sala, as maiores notas, a menina exemplo e isso até que durou por tempo suficiente, todos podiam me desprezar por ser negra mas jamais por ser burra. Uni o útil ao agradável e dessa forma esmaguei todo resquício da cultura negra na minha vida.
Uma menina com menos de 10 anos chorava ao pé da cama implorando à Papai do Céu que ao amanhecer sua pele estivesse uns 2 tons mais claro, seu cabelo um pouco mais liso. Evitava me expor ao sol, minha pele se bronzeava com muita facilidade e oque já era escura ficava cada vez mais, raspava minha pele com uma colher de metal acreditando que minha cor podia desbotar e enbranquecer. Alisava meu cabelo a cada 2 meses até não ter mais forças para evitar um belo de um corte químico.
Observava minhas paixonites de criança de longe, como poderia eu declarar para um menininho branquinho que eu gostava dele? O que ele poderia falar para os outros? E oque já era ruim poderia ficar pior. E assim fui crescendo, sentindo demais e nunca sendo relevante o bastante para ser ouvida. Não deixava ninguém pisar em mim, não tolerava o mais ínfimo desrespeito quanto a minha pessoa, mas por dentro me escondia nas sombras de um outro alguém, escondia-me atrás de minhas próprias palavras.
Com o tempo fui crescendo, negra nua e crua, impassível para aqueles que tentavam passar por cima de mim mas fraca em segredo, mudava oque eu poderia mudar para ser um pouco mais como elas, um pouco menos como eu. Ouvia da minha mãe, negra como eu que nossa pele é retinta, coberta pelo dendê e melaço, que somos fruto da resiliência de quem veio antes. Nós, mulheres pretas, desde a época da escravização somos símbolos sexuais, de promiscuidade e satisfação masculina caucasiana. Antigamente as mulheres de família branca casavam-se virgens e puras, prontas para cederem apenas para seu futuro marido, protegidas pelo ideal sexista e pervertido da época, nesse meio tempo toda ira e desejo sexual masculino era atirado em nosso peito, milhares eram estupradas e violadas porque para a mentalidade porca e imunda desse tempo não éramos o bastante para sermos assumidas, éramos inferiores para sermos apresentadas como senhora do lar. E dessa forma, “bastardos” eram formados à torto e à direito, todos renegados e esquecidos por aqueles que cruelmente os gerou.
Mas não foi o suficiente, não foi o bastante para impedir que se levantassem os gloriosos negros a quem devo minha vida e admiração, prontos para lutarem e perderem a vida se assim for preciso pela libertação de um povo. Um povo cansado com o escárnio que nos eram empurrado guela a baixo. Aretha Franklin, Carolina Maria de Jesus, Tereza de Benguela, Glória Maria, Dandara, Antonieta de Barros, Tia Ciata, Ruth de Souza e diversas outras mulheres que deram o sangue à vida pelo ideal de sua raça, que eternizam-se na curvatura de meu cabelo, no formato de minhas tranças, no sangue inocente que foi derramado em um reinado bárbaro e vil mas que foram fiés à sua luta.
Solidão da mulher preta não é se sentir sozinha, não é a romantização descarada da solitude que vem sendo vendida na atualidade. A solidão da mulher preta é um caminho de rastro de sangue, esquecimento e apagamento de todo um povo e sua história, é a perpetuação dessa infame perversidade que não nos põe em posição de valorização. Nunca seremos lindas o suficiente se comparadas à uma mulher branca, nunca merecedoras de afeto e principalmente de admiração, castigadas pelo árduo passar dos anos e as podres raízes que ele carrega.
Eles são a resposta pra fome
Eles são o revólver que aponta
Vocês são a resposta porque tanto Einstein no morro morre e não desponta
Vocês são o meu medo na noite
Vocês são mentira bem contada
Vocês são a porra do sistema que vê mãe sofrendo e faz virar piada, porra
- Djonga
Todas as vezes que eu olhava no espelho eu via um conjunto de alguma coisa que hoje eu desconheço, sou incapaz de reconhecer, só sei que eu desgostava, eu não me achava feia mas nunca me achava linda, talvez eu fosse linda se a pudesse trocar apenas uma coisa em mim, apenas uma.
Hoje já desconheço esse sentimento, tento o máximo olhar no espelho com um pouco de carinho, carinho pelo oque eu fui, pelo oque eu represento, carinho pela criança que eu fui e que só queria se sentir uma princesa, amada e bonita aos olhos dos outros. Dói ter que se convencer todos os dias que mesmo que não percebam nós temos nossos valores, tão capazes, tão bonitas, tão dignas. Até que se atinja esse nível de aceitação quanto sua própria raça muita coisa se perdeu, muitas memórias não foram formadas, muitos traumas cravados no peito, muito ardeu para chegarmos até aqui.
No fim do dia eu percebo que assim como nossa mãe Sza, eu só queria ser uma garota normal, boa o suficiente para não te envergonhar quando damos as mãos, boa o suficiente para seus pais gostarem de mim, boa o suficiente para ser apresentada aos seus amigos. No fim, isso pode até acontecer mas o caminho é longo, é árduo, mesmo que muitos enquadrem como vitimismo, não é, nunca será.
Vale lembrar, Jesus é blues!
Bom dia Madu!!!⛅ 🍂
Seu texto atravessa a pele, chega no fundo e faz pensar no quanto a solidão que você descreve é profundamente injusta.
Quando você fala da mulher preta, da sua luta constante para ser vista, ou talvez para ser vista da maneira certa, é como se todas as palavras do texto se tornassem um espelho em que a sociedade, na sua indiferença e opressão, se reflete com clareza.
E, ao mesmo tempo, ao escrever isso, você nos faz olhar para as nossas próprias cegueiras.
A maneira como você fala da dor de não se sentir "o suficiente", de se esconder atrás de um outro alguém, ainda que forte por fora, me faz refletir sobre o quanto a sociedade erra ao definir padrões de beleza e valor.
Eu sei que não posso, e não devo, sentir a dor que você sente, mas posso, ao menos, ouvir e reconhecer a injustiça, refletir sobre o espaço que dou à sua história, e procurar ser mais consciente do papel que tenho em tudo isso.
A sua luta pela aceitação, pela visibilidade e, principalmente, pelo respeito, é uma luta de todos nós, mesmo que essa caminhada pareça pesar de um lado só.
Seu texto me lembrou de que o que parece ser só um "problema social" é, na verdade, uma questão profundamente pessoal e humana.
Todos nós, de alguma maneira, temos que aprender a ver além das camadas de opressão e buscar a beleza naqueles que a sociedade tenta apagar.
Eu me sinto honrado e tocado por suas palavras, Madu.
Espero que, aos poucos, mais e mais pessoas possam entender o que você diz aqui, se importar de verdade, e, principalmente, agir para que essa solidão não precise mais existir.
não precise mais existir.
Gostaria de te convidar a visitar meu cantinho, onde falo sobre silêncios e as pausas que todos nós precisamos para refletir.
É um espaço de acolhimento, onde busco também olhar para esses silêncios profundos que falam muito sobre nós, sobre as dores, e sobre os lugares que precisamos resgatar para nos entendermos melhor.
Sinta-se à vontade para passar por lá quando quiser, será um prazer compartilhar essa reflexão com você.
https://alexlimad40.substack.com/
Com respeito e escuta,
Ale, 🍂
@silenciobonito®